quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Portugal a pé - Entre as últimas tabernas do Alentejo

Do Site http://www.cafeportugal.net/, um dos que mais apreciamos pelo destaque que costuma dar ao nosso Alentejo, tomámos a liberdade de publicar o extracto que se segue:

«Senta-te aí homem e bebe qualquer coisa». Um desafio multiplicado muitas vezes nas estradas alentejanas. À mesa, nas tabernas, Nuno Ferreira, entabula conversas com poetas populares, com um «secretário» de taxista. Acaba na Taberna Museu do Zé Pata Curta. Tudo «empurrado» a copos de tinto e a petisco.
Nuno Ferreira" terça-feira, 7 de Setembro de 2010

Ainda descia em direcção a Brinches e já escutava «pum, pum». Queres ver que há festa? Havia mesmo. A pequena povoação alentejana acordava numa súbita manhã sem nuvens e de calor em pleno mês de Abril de 2008 ao som dos foguetes. Não sabia que havia festarola nem tinha programado o meu dia para tal. No Alentejo, no entanto, é absolutamente imperdível e irrecusável escutar um «então, andas a pé? Senta e bebe um copo» e dizer «não» De maneira que ainda a fanfarra dos bombeiros de Serpa deambulava pelas ruas estreitas e brancas com frisos amarelos num esforço suado para despertar os habitantes da sonolência e cansaço da noitada anterior e já estava sentado com anfitriões brinchenses.
«Senta-te aí homem e bebe qualquer coisa», desafiou-me o ex-cantoneiro e poeta popular António José Luís, 86 anos. Ao fim de cinco minutos já estava a fazer exactamente o mesmo que António e os amigos, felizes de ter ali um forasteiro: beber copos de tinto, petiscar e brincar uns com os outros: «Este? Com 86 anos derruba qualquer um no vinho», diz um. «Pudera, nunca trabalhou», comentou. António José Luís dobrou-se, a barriga estendida de encontro à mesa da tasca, riu-se e preparou mais uma quadra.
Quando as horas passaram e percebi que só conseguiria dormida em Pias, um homem aparentando algumas dificuldades em se manter equilibrado e apresentando-se como o «secretário» de um taxista local, disse que rapidamente trataria do assunto. Encarregar-se-ia de chamar o taxista, uma vez que eu, sob o peso de uns copos e torresmos a mais, planeara não caminhar mais naquele dia. Passaram-se 15 minutos, passou meia hora e nada do alcoolizado «secretário». A dada altura, António, o poeta popular lembrou-se de que poderia juntar o útil ao agradável: «Levamos o nosso amigo a Pias e bebemos um copo no Pata Curta». O Pata Curta era mais uma taberna, melhor dizendo, a Taberna Museu do Zé Pata Curta. Lá fomos de carro até Pias, a dez quilómetros, António José Luís a rezar versos ao meu ouvido sob o som ronceiro, ronronante do velho automóvel do amigo.
Na minúscula taberna do Pata Curta, aliás José Bravo Castanho, apercebi-me que era nesses espaços esconsos, pouco iluminados, bancos em madeira, mesas tapadas com toalhas aos quadrados, que encontraria pedaços de um Alentejo a desvanecer-se. Ali, os turistas raramente entram, quanto mais não seja porque não as encontram, sem tabuletas e escondidas em ruelas pouco frequentadas. Em contrapartida, são autênticas redacções onde as últimas novas passam de boca em boca. «Amanhã de manhã», contou-me o Zé Pata Curta, enquanto servia mais um copo pequeno e estreito de vinho, «partem 40 pessoas daqui para a Suíça, para a apanha da pêra, da maçã, da vinha...Com a fome que aí anda…»

Mais tarde, em locais tão remotos e esquecidos quanto Santo Aleixo da Restauração ou Amareleja, fui farejando últimas tabernas. Encontrei várias, entretanto, na zona de Cuba e Vidigueira, todas entregues ao vinho branco da região. Na Vidigueira, encontrei a decadente «O Elias» e a «O Pai d'Ele» não sem algum esforço de etnógrafo amador e na vizinha Vila de Frades terminei entre as 18 talhas de barro da tasca de Carlos Lemos, 78 anos.
«São 18 talhas ao todo mas já só encho quatro», explicou-me o proprietário. Ao fim de dois copos de branco acompanhados de rodelas de pepino com sal, Carlos rezou: «Ó uva que estás na parreira/ brevemente se vinifica em liquido/ cinco litros nos dai hoje/tanto na taberna como em nossa casa/ Livrai-nos das horas mortas e da polícia/ Ámen».
Em Cuba, a tasca mais castiça era a taberna museu de Francisco Fitas, as paredes forradas de alfaias, chocalhos, reminiscências de outros tempos. «As pessoas vinham dos campos, traziam o seu bocadinho de pão e petiscavam», explicou o meu cicerone, o ex-ferroviário Manuel Carvalho, 88 anos. «Está a ver aquelas medidas de cereais? Eram medidas municipais...Aqueles chocalhos ali, cada um tem um som diferente...» Convidaram-me a jantar de uma grandiosa panela de feijão com carne de porco e branco da Vidigueira. «Isto aqui é uma família, é só convívio. Estás cá sábado? Assávamos aí um borrego...»

(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».

(in - http://www.cafeportugal.net/)

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